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segunda-feira, 16 de maio de 2022

A CEGONHA

 Em solitária, plácida cegonha.  

imersa num cismar ignoto e vago,  

num fim de ocaso, à beira azul de um lago,  

sem tristeza, quem há que os olhos ponha?  

  

Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha.  

Talvez que o conde de um palácio mago  

loura fada perversa, em tredo afago,  

mudou nessa pernalta erma e tristonha.  

  

Mas eu que, em prol da Luz, do pétreo e denso  

véu do Ser ou Não-Ser, tento a escalada,  

qual morosa, tenaz, paciente lesma,  

  

ao vê-la assim, mirar-se na água, penso  

ver a Dúvida humana debruçada  

sobre a angústia infinita de si mesma


[ANÍBAL TEÓFILO]

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Os Maiores Inimigos de Roma: Viriato e os Lusitanos


O LUSITANO QUE SE ENCRESPOU COM ROMA

MAL DE AMOR

 Toda pena de amor, por mais que doa,  

no próprio amor encontra recompensa.  

As lágrimas que causa a indiferença,  

seca-as depressa uma palavra boa.  

  

A mão que fere, o ferro que agrilhoa,  

obstáculos não são que Amor não vença.  

Amor transforma em luz a treva densa;  

por um sorriso Amor tudo perdoa.  

  

Ai de quem muito amar, não sendo amado,  

e, depois de sofrer tanta amargura,  

pela mão que o feriu não for curado...  

  

Noutra parte há de, em vão, buscar ventura:  

— fica-lhe o coração despedaçado,  

que o mal de Amor só nesse Amor tem cura.  


[ANA AMÉLIA]

SONHO DE AMOR

 Tudo isto há de passar, de certo, muito em breve...  

Branca névoa sutil ir-se-á quando o sol nasça;  

branco sonho de amor, passará, como passa  

pelas ondas em fúria uma garça de neve.  

  

Passará dentro em pouco, imitando a fumaça  

que se evola e se esvai nas curvas que descreve.  

Fumaça de ilusão, força é que o vento a leve,  

força é que o vento a leve, e disperse, e desfaça.  

  

Que importa! Uma ilusão que nos alegra e afaga  

há de ser sempre assim, no mar bravo da vida,  

como a espuma que fulge e morre sobre a vaga.  

  

Esta me há de fugir, esta que hoje me inflama!  

E antes vê-la fugir como uma luz perdida  

que possuí-la na mão como um pouco de lama...  


[AMADEO AMARAL]

terça-feira, 3 de maio de 2022

PÁLIDA, À LUZ DA LÂMPADA SOMBRIA

Pálida, à luz da lâmpada sombria,

sobre o leito de flores reclinada,

como a Lua por noite embalsamada,

entre as nuvens do amor ela dormia!

 

Era a virgem do mar, na escuma fria

pela maré das águas embalada!

Era um anjo entre nuvens de alvorada,

que em sonhos se banhava e se esquecia!

 

Era mais bela! o seio palpitando...

Negros olhos as pálpebras abrindo...

Formas nuas no leito resvalando...

 

Não te rias de mim meu anjo lindo!

Por ti — as noites eu velei chorando,

por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!

 

[ÁLVARES DE AZEVEDO]

TRAGÉDIA BRASILEIRA

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade,

Conheceu Maria Elvira na Lapa, – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura… Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de
inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

Manuel Bandeira ]